Quase um ano depois do acidente que matou 243 pessoas e deixou
dezenas com seqüelas, pelo incêndio de uma boate em Santa Maria/RS, o Estado
vem apresentar uma nova legislação de prevenção contra incêndio.
Trabalho há 12 anos como prestador de serviços na área comercial
de projetos e sistemas contra incêndio e não vejo diferenças essenciais entre a
lei anterior e a pretensa “nova lei de
prevenção e combate a incêndios no Estado do Rio Grande do Sul”. Como eu
disse em pequeno comentário ao sítio do Jornal do Comércio: a lei anterior também era boa. O que
faltou não foi lei. Carlos Drumond de Andrade diz que "as leis não bastam” - E tem razão, o poeta, porque, a
exempla, o que faltou em Santa Maria, foi fiscalização! Mas continuamos dando
cada vez mais poder a uma entidade que
não sabe lidar com o direito das pessoas...
É
preciso esclarecer, ainda, que assim como aconteceu em Santa Maria, os Planos e
os Projetos de Prevenção Contra Incêndio são protocolados em muitos quartéis do
Corpo de Bombeiros da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul e demoram
meses, às vezes mais de um ano para serem aprovados ou notificados de correção.
Mesmo assim, desde a
lei de 1998, os bombeiros vêm sendo “empoderados”
de uma forma que me parece deveras inconstitucional. Eis que o decreto anterior
remetia para normas que são elaboradas pela ABNT, uma entidade civil. Já a nova
lei, pior do que a anterior, veio dar poder justamente para quem falhou em
Santa Maria/RS, remetendo quase tudo para as RT’s (resoluções técnicas do Corpo
de Bombeiros). Ora, a função da polícia é fiscalizar o cumprimento das normas e
não editá-las.
Já
na legislação anterior, os bombeiros, pretensiosamente criavam as
chamadas portarias e resoluções técnicas e aplicavam como direito restritivo
sobre civis, pessoas, estabelecimentos e empresas. As portarias são para administração interna,
entre subordinados de uma corporação, não para criar obrigação de fazer para
civis, para os administrados.
O
que me surpreendeu muito, quando recebi a revista do CREA/RS com a foto do
companheiro Adão Villaverde, que divulga a nova lei de prevenção contra
incêndio, é que se apontam umas dezoito entidades civis que, em tese, teriam participado
de sua formulação, inclusive uma universidade particular das maiores do Rio
Grande do Sul.
Só não há surpresa
quando se vê a participação de uma universidade cuja menina dos olhos é o curso
de direito, mas que não o pratica apropriadamente, chegando a exigir cheque
calção em contratos de parcelamento, sem mencionar tais cheques no texto do
contrato, o que caracterizaria dois contratos diferentes, o cheque e texto do
contrato propriamente dito.
Essas
aberrações jurídicas estão se fazendo cada vez mais freqüentes na legislação e
na vida dos brasileiros, ainda mais quando os que produzem o direito não têm
conhecimento de como ele funciona.
Voltando
ao caso da prevenção contra incêndio, o que houve em Santa Maria/RS, foi que o
Corpo de Bombeiros aceitou um Plano Simplificado de Prevenção Contra Incêndio,
previsto na Portaria 138 do Estado Maior da Brigada Militar. Mas clubes
sociais, ambientes de dança, não podem, segundo a própria portaria 138
combinada com o decreto de 1998, terem, seus planos contra incêndio,
apresentados de forma simplificada, ou seja, sem acompanhamento técnico de
profissional credenciado junto ao CREA ou CAU. Da forma como se procedeu em
Santa Maria, impuseram-se portarias como obrigação de fazer para civis, quando a própria corporação não as respeita.
Assim
sendo, percebe-se claramente, mas não se comenta, que não foi a lei que falhou.
Não havia necessidade de mudar a lei. Foi a fiscalização que não funcionou! Mas
o governo precisava dar alguma satisfação às famílias das vítimas!
Entre
as diversas falhas que cometem os bombeiros do RS, a que mais me preocupa é
que, além da questão do não cumprimento dos prazos da portaria 64/EMBM é que os
bombeiros têm poder para se divertir, se quiserem, com os planos e projetos de
prevenção. A lei não deixa claro o prazo que eles têm para dar respostas.
Antes, a portaria 64 dizia que deveriam ser 20 dias. Mas, desrespeitando o
princípio jurídico da oportunidade, muitos processos administrativos eram
notificados e, após o cumprimento da notificação, pelo usuário, os bombeiros,
em muitos quartéis, davam nova notificação de um novo item que já tinha sido
visto na visita anterior, mas que ficou para trás, gerando nova
notificação.
Algumas
notificações são tão ridículas e põem ao piso todos os princípios de direito
administrativo, tais como celeridade, impessoalidade, economia processual,
aproveitamento e simplicidade. Outra falha do sistema jurídico brasileiro que
nunca teve o esmero de elaborar um código de processo administrativo, mas que
não justifica que não se observe, pelo menos, o artigo 37 da CF.
Das
notificações mais banais que já recebi foi uma mandando parafusar as placas dos
extintores e de saída, em Esteio/RS, quando se sabe que todas as empresas usam
cola evitando, inclusive, danificar as ditas placas, que tem todo o corpo
normatizado, sem desenho de parafusos. Ou outra mais ridícula dizendo “não foi lançada a área construída na capa
da pasta do PPCI”! Clara a intenção
de atrasar o serviço deste prestador, denegrir sua imagem e favorecer outros
que lhes sejam mais simpáticos. Enterre-se o princípio fundamental da isonomia
e da impessoalidade.
Exemplo
concreto dos problemas que se trazem aqui é o processo de um cliente meu em que
eu solicitei o cumprimento da RT 11 CCB/RS e há doze meses eu estou esperando
resposta. Solicitei ao Corpo de Bombeiros local um alvará com ressalvas,
enquanto não se tem resposta definitiva. O soldado atendente me respondeu que
não poderia fazer isso. Ah, sim! Mas ficar um ano inteiro com o processo
parado, isso pode?!
Por
sorte, de forma velada, todas as prefeituras reconhecem essa morosidade do
Corpo de Bombeiros e têm concedido alvará de funcionamento, aos
estabelecimentos, pelo simples apresentar do protocolo de encaminhamento, como
se fez em Santa Maria. O que será das cidades todas, se as prefeituras
resolverem cumprir, à risca, o artigo 5º da Lei 14.376/26/12/2013?!
Independentemente
da divergência partidária, quero aproveitar, aqui, para pedir que se faça
justiça em relação ao prefeito César Schirmer e aos funcionários daquela
prefeitura. Pois se os bombeiros não cumprem suas obrigações e seus prazos, a
cidade não pode parar. Vai funcionar precariamente e vai colocar a vida de
todos os citadinos e visitantes em risco. Ainda que pese alguma
responsabilidade penal sobre os que operavam a festa e que trancavam as saídas,
a responsabilidade objetiva, acerca dos fatos de 27 de janeiro de 2013, em
Santa Maria/RS, é do Estado do Rio Grande do Sul, que deixou sem resposta, por
seis meses, aquele estabelecimento, que foi, depois e por isso, sinistrado, sem
prejuízo da responsabilidade criminal dos funcionários públicos envolvidos e do
direito de regresso que o Estado tem contra estes.
Eu
gostaria, também, que além de indenizadas as famílias das vítimas, se visse
indenizado o proprietário da boate, que foi mostrado em
algemas, na cama do hospital sob procedimento
arbitrário do delegado da polícia civil local! Esse proprietário havia
protocolado o pedido de vistoria, PSPCI em agosto do ano anterior ao acidente
e, seis meses depois, ainda não tinha resposta. A prefeitura deixou abrir. Era
uma boate, mas poderia ser um supermercado. Incabíveis as algemas, porque o
rapaz era um suspeito acamado em hospital e não manifestava a vontade de fugir.
De fato e, cada vez
mais, de direito, muito poder é dado à uma instituição que deveria simplesmente
fiscalizar. A capacidade técnica para projetos de prevenção contra incêndio é
dos engenheiros, arquitetos, técnicos de segurança, não dos brigadianos! Se essa fórmula de direito começar a ser
praticada, não tarde o SAMU ou a POLÍCIA MILITAR vai criar “Resoluções Técnicas”
para regulamentar a atividade dos MÉDICOS
e dos HOSPITAIS!
O
artigo 5º da Constituição diz que ninguém deverá fazer ou deixar de fazer senão
por força de lei. Bom! Mas daí os nossos queridos deputados criam uma lei
abrindo mão disso, dando amplos poderes para a polícia militar, no caso, os
bombeiros criarem leis com o nome de resolução técnica.
O
que mais me surpreende é que o CREA e o CAU nada fizeram para reagir diante
disso! Todavia, nem tudo está
perdido, os comerciantes, os industriários, a sociedade civil organizada,
deputados e governo ainda podem rediscutir essa lei mal feita e, quem sabe,
criar conselhos municipais de prevenção contra incêndio, democratizando o
acesso e dando mais transparência ao andamento dos processos de prevenção
contra incêndio, evitando, inclusive, possíveis direcionamentos dos serviços às
empresas da simpatia de alguns funcionários da PM.
Lutamos
tanto por uma Constituição democrática! Por que, agora, estamos abrindo mão
dela, criando leis que dispensam a lei?
Sapucaia do Sul, RS, 14 de fevereiro de
2014.
Luciano Braga Alves,
agente comercial em projetos e
sistemas de prevenção contra incêndio,
acadêmico em direito, 7º semestre.